terça-feira, 4 de novembro de 2008

Um raro olhar contemplativo no cinema


Um raro olhar contemplativo no cinema
Publicado no dia 14 de novembro na Folha de Pernambuco

Luz Silenciosa é uma obra estranha e atemporal. Seus personagens, representantes de uma colônia holandesa numa região árida do México, são incomuns como Ets, vivendo num ambiente calorento e excessivamente ensolarado, oposto à brancura de sua pele. A língua, o holandês, também os distingue de modo radical dos seus conterrâneos. O estranhamento é uma das características marcantes dessa obra, mas é uma característica também de toda a arte em geral: ela faz rever a vida, vê-la com outros olhos filtrados pela arte.

Os elementos de exclusão dessa população fazem com que a comunidade pareça não só isolada, mas também perdida no tempo. O isolamento parece ter conservado sua tradição religiosas, assim como seus costumes.

Esta é a base da história que vai se desenrolar no seio de um família estável e lindamente branca, rodeada pela natureza e pela satisfação do repouso familiar. Com uma rotina perfeita de deveres e pequenos lazeres naturais como tomar banho num lago tarkovskiano, a família parece viver num paraíso cotidiano, onde tudo parece simples e belo: o casal harmoniosamente feio com seus belos seis filhos, que são como variações femininas e masculinas sobre o tema da criança loirinha holandesa.

Até que uma paixão avassaladora leva o pai da família a ter uma relação com uma mulher desconhecida, que ele passa a encontrar depois de atravessar um longo matagal. O matagal representa, talvez, a distância e a dificuldade que essa relação terá num contexto tão desfavorável. Porém, a recompensa é à altura da dificuldade: um beijo forte, ardente e desinibido, até mesmo brutal, entre os dois, denúncia o grau do problema que eles vão causar aos outros.

Já nesta estrutura geral é possível se ver a primeira das muitas referências a outros filmes que compõem Luz Silenciosa: a história de Aurora, de F. Murnau. Nos dois se vê a troca de uma relação cotidiana por outra que promete muito mais, nos dois se vê também o arrependimento e a busca pelo retorno.

No entanto, uma diferença se mostra essencial: em Aurora a amante é diabólica e morena, enquanto em Luz Silenciosa ela parece tão bela e tão pura quando a esposa, nos dois, porém, existe o retorno à vida inicial depois da tragédia. Filosoficamente, esse caminho de fuga e retorno para a realidade original depois do aprendizado da perda e da ilusão dá margem a inúmeros sentidos e belas interpretações – o que carrega a obra de uma verdadeira luz aberta para a reflexão e um sentido espiritual intrínseco (coisa que nem todos tem a capacidade de notar).

Nota-se o sentido espiritual também na calma e no tratamento contemplativo da imagem: ela é tranqüila e parece tirar beleza de tudo por onde olha. As falas dos personagens, seus olhares, as cores da obra, as paisagens (como na abertura e no fim do filme) apontam também para a contemplação, tema esquecido no cinema comercial, finalidade última de toda a filosofia segundo Wittigenstein e uma das bases espirituais da arte.

Vendo sua obra no geral, parece que Reygadas leu e releu direitinho Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovski: a falta de trilha sonora, que serve de muleta para a maioria dos filmes medíocres, a serenidade do movimento da câmera, a ambiquidade das falas, a beleza das tomadas, tem a origem certa na estética espiritual tarkovskiana.

É possível se notar também bastante de Bergman e até uma cena inteira de Dreyer. Cheia de referências, a película de Reygadas parece querer dizer: nada se cria, tudo se pastichiza.

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