sábado, 29 de novembro de 2008

Preludio e Fuga BWV 252

A transcrição de Arnold Schoenberg para o Prelúdio e Fuga BWV 225 é um dos mais belos exemplos de sobreposição de gênios – de um simples prelúdio para órgão de Bach, Schoenberg criou uma grandiosa obra orquestral, que exige grande virtuosismo da orquestra, em especial das cordas e das madeiras.

Imensamente distantes temporalmente, esses dois grandes revolucionários da música se complementam nesta composição – ela nos faz refletir sobre a grandiosidade em constante redescoberta de Johann Sebastian Bach. Interessante como, três séculos depois de escrita, a música de Bach pôde ser dessa maneira sacudida e revigorada numa obra completamente diversa de sua música, sendo, no entanto, de sua autoria – ao menos nas notas.

A transcrição de Schoeberg dá cores e volumes completamente originais à obra – como quem pega uma pequena mas bela igrejinha e a transforma numa imensa catedral, enchendo com criatividade e gênio as partes super dimensionadas. As fugas são incrivelmente complexificadas pela ampla orquestra, de modo que Schoenberg usa todo o potencial dos naipes de uma forma brilhante e nova.

O resultado é algo que nem é barroco, naturalmente, e nem é moderno – mais parece romântico, porém disto também não poderia jamais ser classificado. Enfim, é uma obra algo atemporal, apesar de não deixar de ser bachiana, nem schoenberguiana.

PS: Link para quem quer ouvir esta preciosidade:
http://rapidshare.com/files/168304741/CDFBach_-_Schoenberg_-_Preludio_e_Fuga.mp3

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Entrevista com o escritor Fernando Monteiro.
Tema: Existe espaço para o pensamento universal em Pernambuco?


O pensamento cultural pernambucano foi sempre regionalista ou em algum momento de sua história ele tentou ser universal?
R - Eu perguntaria, antes de mais nada, se de fato existe um "pensamento cultural pernambucano". Pode ser até que exista uma espécie de "atitude" nossa, mas não propriamente o que designa o palavra pensamento, e, ainda assim, essa atitude seria mais regional do que mesmo específica do "Leão no Norte" um tanto ou quanto banguela, sempre, pelo menos na área cultural. Nunca me perfilei entre os que admiravam as dentaduras perfeitas nem sequer de Gilberto Freye -- por sinal muito mais postiça do que ainda hoje pensam Edson Néry e outros "gilbertófilos" (esse último dos nossos provincianismos queridos como o bolo de souza leão).

Em que medida o pensamento de Gilberto Freyre influenciou esse regionalismo cultural?
R - Gilberto Freyre foi um conservador na política, um oportunista na vida e um discípulo aplicado de Franz Boas, na socio-antropologia. Não me iludo com o seu discurso de Marco do bairro de Santo Antonio, aos pés do cadáver do estudante Demócrito de Souza Filho (assassinado por esbirros do Estado Novo, na sacada do Diário de Pernambuco) isso apenas três anos depois do nosso sociólogo-antropólogo escrever a seguinte dedicatória para o ditador Getúlio Vargas, na folha de rosto do livro ("O mundo que o português criou") que tornou Gilberto persona gratíssima à ditadura de Antonio de Oliveira Salazar em Portugal: "Ao Presidente Getúlio Vargas, com a velha simpatia e a admiração de Gilberto Freyre. Rio, 1942". Ninguém me disse isso; eu possuo o exemplar, com a infame dedicatória autêntica, do próprio punho de "Giba", evidentemente.

O regionalismo ao mesmo tempo que condensa uma identidade ela negaoutras, criando um clima um pouco artificial de cultura que engendra asi mesma. Você concorda com esta afirmação?
R - Concordo. E a prova dos nove disso é o discurso de um Ariano Suassuna, por exemplo.

Neste contexto, o que representa o goverto do estado ter um secretáriode cultura como Ariano Suassuna, o regionalista por excelência?
R - Representa mais do mesmo, no grau máximo - o que impede que respiremos a atmosfera do século 21, praticamente uma década depois da chegada do Terceiro Milênio. Enquanto os arianistas -- de Jô Soares às velhinhas das secretárias de educação etc -- cairem nas usuais gargalhadas com as velhas piadas do mestre da rua do Chacon, fique certo de que a nossa província mental permanecerá desconectada das melhores possibilidades & virtualidades do futuro que já começou...
Que artistas, ou pensadores pernambucanos romperam essa barreira echegaram à universalidade?
R - Vicente do Rego Monteiro, Josué de Castro e Evaldo Coutinho.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Ismar e Geneton Morais Neto, o que os une?

“Tomar dois objetos diferentes... propor a relação que os une: eis um dos segredos do artista”, dizia Marcel Proust. Juntemos, então, dois personagens de mostras distintas do festival Janela Internacional de Cinema do Recife: um da mostra nacional e outro da mostra de super 8 pernambucana, o que os une?

Ismar e Geneton Morais Neto: um é personagem de um curta documentário de 2007, outro é diretor e narrador de um curta de mil novecentos e setenta e nada, como ele diz. Ismar é retratado no filme homônimo, que faz uma sobreposição entre as imagens do Ismar criança, participando de vários programas de auditório para exibir seu grande conhecimento em cinema, onde era considerado um fenômeno, e sua atual condição de adolescente-barbudinho-com-um-cigarro-na-mão.

A sobreposição dos dois Ismar, o pirralha e o adolescente, cria uma oposição natural: aquele menino midiático e sorridente se transformou no barbudinho “enigmático”, que se nega a falar sobre o passado de estrela juvenil. Mas um olhar aprofundado nota que ele não mudou: foi e é somente o equivalente de sua idade: o garotinho da mamãe era o menino esperto, sorridente - o barbudinho roqueiro é o cara legal, o brother, cheio de ideologia de fumaça.

Sobreposição semelhante aparece na nossa cabeça ao ver Funeral para um Década de Brancas Nuvens, do atual editor do Fantástico. Poético, revolucionário, marxista, marxista, marxista, o filme trata sobre o autoritarismo político com imagens sugestivas, que remetem à opressão. Como em Ismar, vemos a oposição dos dois Genetons Morais Netos, o cineasta-super-oitista-revolucionário-marxista e o editor do Fantástico.

Também como em Ismar, os opostos de Geneton se tocam, o marxismo da juventude (o equivalente à fase barbudinha de Irmar) se sucedeu naturalmente pelo midiatismo liberal – assim, Genetou também não mudou, seguiu sendo o equivalente de sua idade, passou do apocalíptico juvenil ao integrado ao grande show da mídia.

Fica, então, a reflexão sobre o que aprendemos com Ismar e Geneton: quanto mais se muda mais se é o mesmo.

domingo, 16 de novembro de 2008

O Menino-aranha

O Menino-aranha (Mariana Lacerda, 2008) é um filme humanizado, centrado no personagem que é retratado em depoimentos em off. Mas a originalidade está na forma do filme: ele é arquitetônico, ou melhor, volumétrico, ao mostrar o espaço físico onde o personagem do curta documentário fazia seus furtos mirabolantes.Assim, com belas tomadas e cuidadosos jogos de câmera, além de uma trilha sonora (com três notas que se repetem) que ressalta o caráter enigmático da obra e do personagem, a imaginação do espectador passa agir e relacionar as falas dos depoimentos, frases cuidadosamente pinçadas de familiares e especialistas que o conheceram, com as imagens de lugares em que o Menino-aranha agia: coberturas de prédios, sacadas, janelas, pilotis, elevadores.O grande mérito do filme é a capacidade de fazer o espectador criar a partir das imagens: em o Menino-aranha o espectador torna-se co-criador. As sucintas frases em off, captadas de depoimentos, atuam também neste sentido: elas apontam sentidos que não são nada mais que pano para manga da imaginação do espectador: elemento principal desta obra aberta. Porém, o filme não se detém a seu tema: o garoto que subia prédios de até 33 andares para furtar, ele o transcente ao refletir sobre o espaço urbano (do Recife) e sobre as injustiças sociais.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Um raro olhar contemplativo no cinema


Um raro olhar contemplativo no cinema
Publicado no dia 14 de novembro na Folha de Pernambuco

Luz Silenciosa é uma obra estranha e atemporal. Seus personagens, representantes de uma colônia holandesa numa região árida do México, são incomuns como Ets, vivendo num ambiente calorento e excessivamente ensolarado, oposto à brancura de sua pele. A língua, o holandês, também os distingue de modo radical dos seus conterrâneos. O estranhamento é uma das características marcantes dessa obra, mas é uma característica também de toda a arte em geral: ela faz rever a vida, vê-la com outros olhos filtrados pela arte.

Os elementos de exclusão dessa população fazem com que a comunidade pareça não só isolada, mas também perdida no tempo. O isolamento parece ter conservado sua tradição religiosas, assim como seus costumes.

Esta é a base da história que vai se desenrolar no seio de um família estável e lindamente branca, rodeada pela natureza e pela satisfação do repouso familiar. Com uma rotina perfeita de deveres e pequenos lazeres naturais como tomar banho num lago tarkovskiano, a família parece viver num paraíso cotidiano, onde tudo parece simples e belo: o casal harmoniosamente feio com seus belos seis filhos, que são como variações femininas e masculinas sobre o tema da criança loirinha holandesa.

Até que uma paixão avassaladora leva o pai da família a ter uma relação com uma mulher desconhecida, que ele passa a encontrar depois de atravessar um longo matagal. O matagal representa, talvez, a distância e a dificuldade que essa relação terá num contexto tão desfavorável. Porém, a recompensa é à altura da dificuldade: um beijo forte, ardente e desinibido, até mesmo brutal, entre os dois, denúncia o grau do problema que eles vão causar aos outros.

Já nesta estrutura geral é possível se ver a primeira das muitas referências a outros filmes que compõem Luz Silenciosa: a história de Aurora, de F. Murnau. Nos dois se vê a troca de uma relação cotidiana por outra que promete muito mais, nos dois se vê também o arrependimento e a busca pelo retorno.

No entanto, uma diferença se mostra essencial: em Aurora a amante é diabólica e morena, enquanto em Luz Silenciosa ela parece tão bela e tão pura quando a esposa, nos dois, porém, existe o retorno à vida inicial depois da tragédia. Filosoficamente, esse caminho de fuga e retorno para a realidade original depois do aprendizado da perda e da ilusão dá margem a inúmeros sentidos e belas interpretações – o que carrega a obra de uma verdadeira luz aberta para a reflexão e um sentido espiritual intrínseco (coisa que nem todos tem a capacidade de notar).

Nota-se o sentido espiritual também na calma e no tratamento contemplativo da imagem: ela é tranqüila e parece tirar beleza de tudo por onde olha. As falas dos personagens, seus olhares, as cores da obra, as paisagens (como na abertura e no fim do filme) apontam também para a contemplação, tema esquecido no cinema comercial, finalidade última de toda a filosofia segundo Wittigenstein e uma das bases espirituais da arte.

Vendo sua obra no geral, parece que Reygadas leu e releu direitinho Esculpir o Tempo, de Andrei Tarkovski: a falta de trilha sonora, que serve de muleta para a maioria dos filmes medíocres, a serenidade do movimento da câmera, a ambiquidade das falas, a beleza das tomadas, tem a origem certa na estética espiritual tarkovskiana.

É possível se notar também bastante de Bergman e até uma cena inteira de Dreyer. Cheia de referências, a película de Reygadas parece querer dizer: nada se cria, tudo se pastichiza.